Revolução de Outubro e os direitos das mulheres

A Revolução de Outubro e os direitos das mulheres


imagempor MARGARIDA BOTELHO
O MILITANTE (Partido Comunista Português) – REVOLUÇÃO DE OUTUBRO, EDIÇÃO Nº 348 – MAI/JUN 2017
«Foi a União Soviética o primeiro país do mundo a pôr em prática ou a desenvolver como nenhum outro direitos sociais fundamentais, como (…) a igualdade de direitos de homens e mulheres na família, na vida e no trabalho, os direitos e protecção da maternidade (…)» [1] . A Revolução de Outubro deu um impulso extraordinário à consagração dos direitos das mulheres, alcançando em poucos dias direitos que no nosso país levámos décadas a conquistar, e servindo de exemplo e estímulo à luta das mulheres de todo o mundo. O processo de construção do socialismo na URSS manteve sempre no centro das suas preocupações a emancipação feminina. O desaparecimento da URSS levou a recuos brutais nas condições de vida das mulheres, não só nos antigos territórios soviéticos, como no plano internacional.
Estes factos não são, no entanto, conhecidos da generalidade das mulheres. Faça-se uma experiência simples: escrevendo no Google «direitos das mulheres«, o primeiro texto que aparece, da wikipédia, omite qualquer referência à URSS. Nem fatos absolutamente inquestionáveis, como ter sido a primeira sociedade do mundo em que a todos – homens ou mulheres, analfabetos ou formados, de qualquer nacionalidade ou condição social – foram consagrados os mesmos direitos, são referidos.
É partindo dessa realidade que este artigo pretende contribuir com elementos e ferramentas para a batalha ideológica que travamos em torno do centenário da Revolução de Outubro.
O contexto A realidade russa em Outubro de 1917 era muito complexa. Por um lado, o atraso secular do país, o pesadelo da guerra, as enormes assimetrias nos planos económico, social e cultural das diversas repúblicas que viriam a constituir a URSS – nalgumas regiões, existiam relações semi-feudais, e o papel da mulher era de subalternidade, em particular nas regiões da Ásia central, onde as mulheres faziam parte do «património» do marido.
Por outro lado, «os direitos da mulher e das crianças integravam desde o início o programa dos revolucionários russos. (…) No projecto de Programa do Partido Operário Social-democrata da Rússia, redigido por Lénine, constavam já uma série de reivindicações, tais como, por exemplo, o sufrágio universal, a igualdade de direitos laborais, o ensino universal e gratuito. Em Março de 1917, após a Revolução de Fevereiro, realizou-se em Petrogrado, o I Congresso das Mulheres Trabalhadoras, onde foi aprovado um programa com os direitos das mulheres trabalhadoras e medidas relativas à protecção da maternidade e da infância que serviram de base ao Sistema Soviético nessas áreas de intervenção». [2]
As primeiras decisões A existência desse programa ajuda a compreender como foi possível avançar tanto e tão rapidamente. «O primeiro Estado socialista do mundo, logo nos primeiros tempos da existência, aboliu todas as leis que discriminavam a mulher no seio da família e da sociedade. Em 1919, decorridos apenas dois anos, Lénine chamava a atenção para que nesse curto espaço de tempo “o poder soviético, num dos países mais atrasados da Europa, fez mais pela libertação da mulher e pela igualdade com o sexo “forte” do que fizeram durante 130 anos todas as repúblicas progressistas, cultas e “democráticas” do mundo, somadas em conjunto.» [3]
Logo no dia 8 de Novembro de 1917, o decreto da Paz e da Terra determinava que o uso da terra era concedido a todos os cidadãos, sem distinção de sexos.
A 11 de Novembro, foi aprovado o decreto que determinava as 8 horas de trabalho diárias, com pausas para descanso e refeições, fixava os dias de descanso semanal, o direito a férias pagas e proibia o trabalho antes dos 14 anos. No mesmo dia, aprovou-se igualmente o decreto da Segurança Social, que previa protecção na doença, na velhice, no parto, na viuvez, etc. Dois dias depois, a primeira mulher ministra do mundo tomava posse como Comissária do Povo para a Segurança Social. Chamava-se Alexandra Kollontai e tempos depois viria a ser também a primeira mulher embaixadora do mundo (em 1922, na Suécia).
A 31 de Dezembro, foi aprovado o decreto que introduziu o casamento civil – que passou a ser o único reconhecido na lei –, legalizou o divórcio e acabou com a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos.
Em Dezembro de 1918, foi publicado o Código de Trabalho. Abolia diversas discriminações (fim das restrições a profissões com base no sexo, proibição do despedimento de grávidas, salário igual para trabalho igual, entre outras), e previa condições de apoio à família que pretendiam estimular que as mulheres trabalhassem e interviessem socialmente (licença de parto, dispensa para amamentar, etc).
As mulheres trabalhadoras Com a Revolução é promovida a ideia de que a entrada das mulheres no mercado de trabalho é um elemento determinante na sua emancipação. O número de mulheres trabalhadoras foi aumentando ao longo dos anos na URSS. Em 1975, as mulheres eram 51% dos trabalhadores, três vezes e meia mais do que em 1940. [4]
A especificidade do trabalho das mulheres foi protegida, prevendo-se uma idade de reforma antecipada face à dos homens (55 anos para as mulheres, 60 para os homens), havendo reformas mais cedo em certos sectores (50 para as mulheres da indústria, 45 para radiólogas, hospedeiras e certas profissões do teatro). [5]
Antes da Revolução de Outubro, a taxa de analfabetismo das mulheres era de 83%. O salto foi de gigante: em 1986, as mulheres eram 59% dos especialistas com educação superior e secundária especializada, cerca de 50% dos engenheiros industriais e do sector agrícola, 30% dos juízes, três em cada quatro médicos. [6]
Maternidade e apoio à infância Quatro meses de licença de gravidez e parto, com salário integral, com a possibilidade de ficar até um ano em casa com o bebé com o posto de trabalho salvaguardado, trabalhos mais leves no final da gravidez, foram direitos conquistados logo em 1918.
O bem-estar das mulheres merecia constante investigação. A contracepção era gratuita. O chamado «parto sem dor» – o método psico-profiláctico – nasceu na URSS, tendo sido apresentado no meio académico soviético em 1949 por uma equipa de obstetras e psiquiatras. Foi divulgado no resto do mundo a partir de 1952, depois de o famoso francês Lamaze ter feito um estágio na URSS e regressado a Paris.
A amamentação era cuidadosamente protegida. O Código do Trabalho de 1918 previa que, durante o primeiro ano de vida da criança, e enquanto durasse a amamentação, as mães tinham direito a 30 minutos por cada três horas para amamentar o bebé.
Pelo menos desde os anos 50 que existiam bancos de leite materno em todo o país, que asseguravam aos filhos das mulheres que por qualquer motivo não podiam amamentar o alimento mais completo que os bebés podem ter. O carácter inovador desta medida fica bem expresso quando lembramos que o primeiro banco de leite humano em Portugal nasceu com carácter experimental em 2009, e que ainda hoje tem uma abrangência muito reduzida.
O Estado soviético desenvolveu uma rede de infra-estruturas de apoio e protecção à infância, com destaque para as creches e jardins de infância – com horários adaptados aos trabalhos por turnos, de carácter sazonal a acompanhar os períodos das colheitas, existentes em universidades e na maior parte das empresas –, mas que incluíam também colónias infantis, casas de campo estivais, estâncias de turismo infantil, casas de pioneiros, etc.
«Uma experiência brilhante: a legalização do aborto na URSS» [7] Em 1920, confrontado com as consequências desastrosas do aborto clandestino (metade das mulheres sofriam infecções posteriores e 4% morriam, apesar de estar consagrada desde 1918 uma licença de três semanas com salário integral em caso de aborto, espontâneo ou provocado), o Governo soviético legaliza o aborto em meio hospitalar, publicando um decreto para «proteger a saúde das mulheres e considerando que o método da repressão neste campo não atinge este objectivo». Os resultados foram positivos, não se verificando nenhuma morte nem nenhuma infecção na sequência dos abortos praticados nos serviços públicos, a partir de 1925, tendo diminuído a mortalidade infantil e aumentado a natalidade.
Em 1937, esta legislação viria a ser radicalmente alterada. «O CCE do Conselho dos Comissários do Povo da URSS, depois de uma ampla discussão popular do projecto de lei durante quase um ano, decidiu proibir a prática do aborto com excepção do aborto terapêutico, estabelecendo uma “crítica social” à mulher que o faça infringindo a lei e penas de prisão para os que o executem. Esta lei parte do pressuposto de que a mudança de condições económicas e sociais se pode considerar como a cúpula de toda a longa e tenaz luta levada a cabo contra o aborto desde 1920.»
Participação política Em 1974, 31% dos membros do Soviete Supremo eram mulheres, sendo 36% nos Sovietes Supremos das Repúblicas Federadas e Autonómas e 47% nos Sovietes locais. [8]
A provar que existe uma relação íntima entre ideologia e participação, e que os direitos nunca estão assegurados para sempre, registe-se o facto de que nas primeiras eleições chamadas «livres» após a derrota do socialismo, nos países da ex-URSS a presença de mulheres eleitas nos parlamentos nacionais passou a situar-se entre os 3,5% e os 20%. [9]
As tarefas domésticas «Não satisfeito com a igualdade formal das mulheres, o Partido luta para libertar as mulheres de toda a responsabilidade da obsoleta economia doméstica, substituindo-a por casas comunais, cantinas públicas, lavandarias públicas, creches, etc.» – lia-se no Programa Político do Partido Comunista Russo (Bolchevique), aprovado no seu 8.º Congresso, em 1918 [10] .
Não dispondo de dados sistematizados sobre o grau de concretização destes objectivos, sabe-se que existiam diversos equipamentos a preços muito baixos como cantinas, lavandarias, ateliers de arranjos, etc.
Apesar de avanços que até vistos do século XXI parecem ficção científica, em 1975, numa edição especial da revista «Vida Soviética dedicada ao Ano Internacional da Mulher, era apresentado um estudo sociológico que referia que «cerca de 60% das trabalhadoras de diversas cidades do país responderam que fazem todos os trabalhos domésticos sem a ajuda dos maridos.» [11]
Na Conferência do PCP sobre «A Emancipação da Mulher no Portugal de Abril», o texto final considerava a este propósito que «não desaparecem de súbito os preconceitos sobre a mulher, nem a sua emancipação se verifica automaticamente com as novas relações de produção». [12]
As mulheres e a guerra A dramática dimensão da perda de vidas humanas durante a Segunda Guerra Mundial, na qual morreram 20 milhões de soviéticos, teve naturalmente consequências na composição demográfica da sociedade. Durante a guerra as mulheres assumiram os lugares deixados vagos pelos homens que partiram para as frentes de batalha, e no pós-guerra o seu trabalho continuou a ser indispensável à produção e ao desenvolvimento económico.
Mas as mulheres soviéticas participaram também de forma destacada na própria guerra. O serviço militar foi aberto às mulheres em 1939. Estima-se que mais de 800 mil mulheres [13] tenham participado directamente em acções de batalha e de guerrilha, além de serem metade dos médicos destacados na frente. São famosos os regimentos aéreos e de atiradores exclusivamente femininos, em particular o 46.º regimento de bombardeamentos de mergulho, que começou a operar em 1941 e cuja eficácia mereceu por parte do exército nazi o epíteto de «Bruxas da Noite». Refira-se a este propósito que a primeira vez que a Força Aérea portuguesa aceitou uma mulher no curso de piloto aviador foi em 1988 e que a primeira mulher piloto de caça norte-americana se formou em 1994.
★★★
Divulgar as conquistas das mulheres no quadro da Revolução de Outubro não tem apenas interesse histórico. Conhecer os direitos alcançados e a luta travada para os confirmar e aprofundar, avaliar aspectos decisivos para essas conquistas, como a arrumação das forças de classe ou a questão do Estado, aprender com as experiências e as limitações que se verificaram, reflectir sobre o tempo durante o qual se perpetuam nas sociedades determinadas mentalidades, são todos elementos que temos de ter em conta e continuar a aprofundar. Porque também no que diz respeito à emancipação das mulheres, o socialismo é verdadeiramente uma exigência da actualidade e do futuro.
Notas
(1) Resolução do Comité Central do PCP «Centenário da Revolução de Outubro – Socialismo, exigência da actualidade e do futuro», de 17 e 18 de Setembro de 2016.
(2) Manuela Pires, «A Revolução e os direitos da mulher», in «Vértice», 137/Novembro-Dezembro de 2007, p. 54.
(3) «A Emancipação da Mulher no Portugal de Abril» – Conferência do PCP, 15 de Novembro de 1986, p. 12.
(4) «Mulher: Direitos iguais aos do homem», entrevista com Lídia Líkova, in «Vida Soviética», Ano 1, n.º 6/7 – Outubro/Novembro de 1975, pp. 10-11.
(5) Idem.
(6) Álvaro Cunhal, intervenção de encerramento de «A Emancipação da Mulher no Portugal de Abril» – Conferência do PCP, p. 67.
(7) Título do capítulo dedicado à realidade na URSS em «O aborto – causas e soluções», de Álvaro Cunhal, pp. 87-93. Todas as informações e citações deste ponto são desta fonte.
(8) A mulher na União Soviética: Alguns dados, in «Vida Soviética», Ano 1, n.º 1, Maio de 1975, p. 21.
(9) Conceição Morais, no Fórum do PCP sobre «A Situação das Mulheres no Limiar do Século XXI», 23 de Janeiro de 1999, p. 94.
(10) Manuela Pires, artigo citado.
(11) «Horizontes familiares», artigo de Anatóli Khártchev, in «Vida Soviética», Ano 1, n.º 6/7 – Outubro/Novembro de 1975, pp. 22-23.
(12«A Emancipação da Mulher no Portugal de Abril» – Conferência do PCP, p. 13.
(13) Manuela Pires, artigo citado, p. 66.
Sovietes de mulheres «A nova moral soviética afirmava-se com dificuldade na vida, na consciência das pessoas. Nestas condições, os sovietes de mulheres constituíram um poderoso e ao mesmo tempo penetrante instrumento, com a ajuda do qual foi possível eliminar costumes seculares num prazo relativamente curto (10/15 anos aproximadamente).
Uma das habitantes de Ianguiiul (cidade do Uzbequistão), contemporânea desses acontecimentos, disse-nos que as primeiras activistas dos sovietes de mulheres eram russas, expressamente enviadas pelo Partido Comunista, para ajudar as suas companheiras uzbeques, tadjiques, quirguizes, turquemenas. Elas dirigiam os grupos de alfabetização, atraíam as mulheres para a actividade social, para a participação na produção, e desenvolviam uma grande actividade para que os homens adquirissem consciência da necessidade de acabar com os costumes antigos, aprendendo a ver nas suas mulheres cidadãs livres e iguais em direitos. «Na nossa aldeia (…) o soviete de mulheres organizou cursos de caixeiros. Quando elas começaram a trabalhar nas lojas, muita gente se reunia para as ver, pois eram muitos os que não acreditavam que a mulher fosse capaz de medir e pesar com precisão uma mercadoria ou de contar o dinheiro. Actualmente existem na nossa cidade centenas de médicas, professoras, engenheiras.»
(Excerto da reportagem de Tatiana Sinitsina, «Vida Soviética», Ano 1, n.º 6/7 – Outubro/Novembro de 1975. p. 26).

Comentários