Conto - Assassinato Autorizado - Etelvina Diogo





ASSASSINATO AUTORIZADO
O ambiente fedia, assim como o corpo das mulheres que aí se encontravam, devido a escassez de água para apenas um banho diário, depois de muito trabalho braçal. Elas já não sentiam fome habituadas a pouca comida. Algumas caminhavam taciturnas com os olhos perdidos no horizonte e corações angustiados por saudade.Outras orgulhosas no seu caminhar arquitectavam ainda planos diabólicos para alimentarem a sua maldade. A demência aproximava-se mais delas do que a morte que já batia à porta.Contudo, havia ainda alguma beleza em seus corpos e nos rostos fustigados pelas intempéries.


Nos corredores das celas outras mulheres percorriam as linhas rectas com pistolas no coldre, piso firme e olhar inquiridor, atentas a todos os movimentos das mulheres infelizes. Os rostos eram duros como os porretes que transportavam nas mãos para agredi-las, caso fosse necessário ou, até mesmo por entretenimento e antipatia gratuita. 

Os crimes protagonizados pelas mulheres eram diversos, alguns até mesmo ridículos, como o caso da mulher que roubou um peixe pequeno onde trabalhava, para alimentar o filho anémico. A patroa chamou o irmão que era Comandante de uma Esquadra para prendê-la. Não teve direito a defesa, nem sequer foi ouvida e muito menos á vizinha, (irmã da Igreja) que, ao se aperceber da situação correu com dois peixes frescos na mão e algum dinheiro para indemnizar a senhora descontrolada, que gritava impropérios á empregada. 

Desgraça estava agora na cela, ao lado de assassinas altamente perigosas, drogadas completamente alienadas e todo o tipo de escroque que as sociedades absorvem, pensando nos dois filhos pequenos que abandonara na casa da vizinha que a acudiu, porque a família morava no sul do País e era viúva. 

Desgraça trabalhava em casa de Dona Abastada há três anos, recebendo vinte mil Kwanzas de salário por mês. Prestava serviços de segunda-feira até o sábado, das sete as dezassete horas sem descanso. Fazia de tudo para manter a casa limpa, bem como tratava da roupa e das refeições. No princípio não era difícil porque ainda podia contar com o salário do falecido marido que era guarda, ele morreu de malária há um ano. 

Do dinheiro que recebia pagava ainda os cinco mil kwanzas mensais, de renda para se manter na casa onde vivia. Os filhos de quatro e seis anos de idade comiam mal, só não estavam rotos graças a generosidade da Igreja que frequentava e muitas vezes recebia outras ajudas. 
Mas, naquele mês todos se tinham esquecido dela e para piorar a situação, Desgracinho ficou muito doente. Todo o dinheiro do salário serviu para comprar os remédios para o pequeno que já convalescia.

Desgracinho estava anémico, o médico recomendara uma melhor alimentação. Desgraça tinha fuba para o funje, porque sempre que saía da casa da Dona Abastada, depois de alimentar os filhos, dedicava-se a um outro trabalho, pisava bombó no pilão, até transformá-lo em fuba até se cansar, assim garantia a fuba necessária para alimentar os filhos. A jimboa e a miengueleka tirava do quintal.

No dia do azar aguardou pela patroa até às dezoito horas, queria pedir um pouco de peixe. Dona Abastada não era má pessoa, assim pensava ela. Algumas vezes oferecia-lhe as sobras da comida se no dia seguinte não comessem.

Também recebia algumas roupas velhas dos filhos e quando limpava a arca, os frescos que ficavam colados no fundo e que careciam de baldes de água para os soltar, eram distribuídos aos empregados. Ela, o guarda e o motorista dividiam equitativamente os frescos.Mas só fazia a limpeza da arca de três em três meses e a doença não podia esperar, precisava fazer a refeição para alimentar o Desgracinho, que ainda estava muito debilitado. Ao sair da cozinha com o pequeno carapau na mão para dar gosto ao molho do funji, foi surpreendida pela Dona Abastada e zás! cadeia com ela.

Desgraça estava na cadeia há seis meses. Não tinha ninguém para a defender. Quase não recebia visitas, a única que aparecia duas ou três vezes por mês era a vizinha, apenas para se queixar dos filhos dela. Os familiares desconheciam a situação em que se encontrava, a comunicação entre eles acontecia se alguém se deslocasse para visitar e isso não acontecia há mais de dois anos.

Algumas presas tinham privilégios negados a outras, recebiam de casa alimentos de boa qualidade, cigarros, drogas, valores monetários para pagar os serviços e outros benefícios. Desgraça também começou a receber um tratamento especial e não sabia porquê. Já não lhe faltava água para o banho e até sabonete recebeu. A comida melhorou, de vez em quando recebia bolachas, farinha torrada, leite e açúcar que comia com as amigas.

Algum tempo depois foi levada ao gabinete do chefe da cadeia, com o pretexto de que estava lá um advogado que lhe queria falar. Ela pensou que fosse a Igreja a mandar, já que tinha sido uma crente muito dedicada aos trabalhos da igreja e, todos os domingos madrugava para ajudar na limpeza, apesar de estranhar muito a falta de visita dos irmãos. Lembrou-se que só a visitaram no primeiro mês e nunca mais voltaram. 

Desgraça sentiu-se ainda mais desgraçada em frente do homem nojento que a recebeu, cuja fama era conhecida por todos os enclausurados. Na sala não havia nenhum Advogado. Suspensa, rezou em silêncio pedindo a Deus um milagre. Estava em frente do monstro da cadeia, assim era conhecido nas celas. Marido de algumas presas e mulher dos presos e de alguns funcionários favorecidos. Passava a vida fechado naquelas paredes como um recluso, parecia não ter família fora à sua espera. Aí levava a vida na inércia e na promiscuidade. Ora homem, ora mulher, dependendo do apetite.

Ele era uma pessoa de estatura privilegiada, transportava uma barriga avantajada no gingar desengonçado a contrastar com a bunda pequena; os olhos quase desapareciam no rosto por causa das bochechas salientes. Tinha os lábios excessivamente grossos e ressequidos; o sorriso era demoníaco, expunha as gengivas escuras e dentes amarelecidos pelo tabaco e pouca higiene. Poucas vezes era visto no quintal, deixando todos os seus afazeres aos subordinados que nada faziam. Eram os presos que cuidavam de tudo, inclusive da escrituração dos documentos que saia do presidio, até mesmo relatórios.

O chefe da cadeia observava-a com os olhitos pequeninos e escuros como um esgoto de água suja. Desgraça sentiu um arrepio e retraiu-se apavorada. A sua agonia foi maior quando viu a minhoca enfezada entre as pernas raquíticas dele que lhe espreitava com vida. Ela estava petrificada, parada no lugar onde fora deixada pela carcereira. 

O monstro aproxima-se devagar, baixou a cabeça para mostrar um semblante excitado, na testa, uma veia grossa enfeava-lhe ainda mais o rosto. Ele rosnava como um bicho quando a sofregamente, na boca trémula. A saliva mal cheirosa pareceu-lhe ranhosa, os lábios ressequidos quase feriram a textura suave dos lábios da reclusa que, vomitou de nojo. Ele ignorou o mal-estar da presa e rasgou-lhe a camisola amarela, que recebera quando deu entrada na prisão. Agarrou freneticamente os seios ainda firmes, com os sebosos dedos gordos. As unhas enlutadas penetraram-lhe na pele e o monstro gemeu como um porco a ser degolado. As pernas da Desgraça deixaram de receber o comando do cérebro e caiu estatelada no chão, nauseabundo do escritório. O monstro arfou de felicidade ao penetra-la rudemente. Ela nada sentiu porque desmaiou.

Acordou na cela toda dolorida, seu corpo intocado durante anos, não suportou a agressão que lhe fora imposta, ao perceber que tinha sangue a escorrer-lhe pelas pernas esforçou-se para recordar o que tinha acontecido.

Na sua viagem pelo subconsciente, encontrou-se num escritório repugnante que continha apenas uma mesa nua e um esqueleto de armário, onde se atracavam alguns papéis sujos, que lutava por um lugar condigno para se acalmarem. Olhou para o seu corpo com nojo e vomitou sem parar, quase expulsando as tripas quando foi levada ao Posto de Saúde. A partir daí a sua vida passou a ser um tormento, redobraram-lhe os trabalhos e as agressões gratuitas e diminuíram-lhe as refeições.

Um mês depois Desgraça não se aguentava em pé, os vómitos voltaram e eram constantes, como passou a ser constante as suas idas e vindas ao Posto de Saúde da Cadeia. Algum tempo depois, chegou-lhe o diagnóstico. Desgraça estava grávida do monstro, para a sua desgraça. A partir daí nunca mais comeu tendo perecido sete dias depois.

O monstro foi visto a chorar pela primeira vez, ajoelhado no chão. A morte da Desgraça abalou todos os moradores daquele cárcere. 

A postura convulsionante do monstro postado no chão estremeceu os muros da prisão, assustando as almas que vagueavam perdidas pelo recinto, por falta de paz. Juntas uniram as mãos para receber mais uma INFELIZ.

Fora das portas do calabouço, Desgracinho ainda sorria feliz, com o milho torrado preso no dentinho de leite.


autora - Etelvina Diogo
Contista, romancista e poetisa 
Membro correspondente da Academia de Letras do Brasil - ALB
Luanda - Angola


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