Crônica - O marido da outra - Etelvina Diogo


O MARIDO DA OUTRA
A saia minúscula que ela vestia era clara, como a luz que naquela manhã bronzeou as pernas bem torneadas de quem a exibia. No busto apenas os seios de fartura desafiadora e atrevida lascívia estavam parcialmente cobertos. A sua nudez enlouquecia os vizinhos e deixava o amante com a natureza desperta; mulher apetitosa, com feições de gulosa e andar ondulante. Nunca ninguém lhe conhecera os cabelos escondidos atrás de postiços, fio brasileiro. Para o “Azarado” aquela mulher era indispensável como o ar que respirava; sem ela a sua vida era só desânimo.

“Azarado” não era um homem bonito. De estatura baixa e atitudes bastante teatrais para chamar a atenção das pessoas que com ele conviviam e, graças aos lanches que pagava conseguiu granjear amizade no bairro onde morava a sua amante. 
No Zangado, os habitantes dedicavam-se fundamentalmente ao comércio. Uma anciã, vestida de panos com kimone às riscas, carregava o peso de uma trança grossa, adormecida na testa suada, devido à surra que dava à jinguba que lutava para virar kitaba . Esta, por sua vez, seria vendida na praça de S. Paulo, enquanto uma outra mulher, mais jovem, formigava a higiene da casa. As crianças saltitavam descalças no quintal, lambendo com prazer o ranho que escorria do nariz.
- Uf, que porcaria! – “Azarado” cuspiu, enojado ao pisar uma dibinga .
- Anda bem, “Azarado”, senão fico com nojo de ti, parece que não conheces o caminho, vens aqui tantas vezes! Tás cego ou quê? - A pergunta dela foi agressiva.
- Isso aqui vai de mal a pior amor, já estou a considerar a ideia de arranjar casa para ti noutro lugar.
- Morar num outro lugar? – Ela parou bruscamente indignada, olhou para ele de cenho trancado. Ele não se abalou e continuou.
- Sim, filha! Vamos constituir família, temos que viver em condições de habitabilidade aceitáveis, aqui não há isso. - Azarado falou amorosamente.
- Não quero! Nasci aqui e aqui vou morrer, é melhor habituares-te a isso pois não pretendo sair daqui, por outro lado, quem foi que te disse que quero ter filhos contigo? – Perguntou com ar de gozo.
- É preciso dizer? –“Azarado demonstrou tristeza na voz. - Se dormimos juntos é natural que, com o tempo os filhos venham.
- Tira o cavalinho da chuva, contigo não faço filhos.
- Porquê?!
- Porque és casado, pensas que sou burra para fazer filhos com homem casado?
- Não serias a primeira.
- “Azarado”, vamos acabar esta conversa, que é melhor.
Ele, que também não estava a gostar do rumo que levava a conversa, preferiu calar-se para não estragar a noite. Com ela era uma festa.
Junto de uma árvore, um velho caquético mostrava as feridas com o declínio da boca que a trombose tinha visitado recentemente, despejando baba incessantemente. Nem mesmo o lamentar pelo desleixo dos filhos interrompe o chafariz plantado na cara do doente, com fome de carinho, olhando com nostalgia para o neto que se empanturrava com gelado de múcua , sentado nos degraus da casa.
O cenário comparava-se ao estado da “Coitada”, que carregava toneladas de ódio pela rejeição do marido, que só tinha olhos para a amante. Ela tinha passado mais uma noite sozinha enquanto a outra despertara enroscada nas pernas do marido dela.
- “Azarado” me arranja só dinheiro para comprar uma geleira nova, a que tenho já não está boa!
- Agora não tenho dinheiro amor! Tu também passas a vida a me “partir o braço” – Não que lhe faltasse dinheiro, “Azarado” ainda remoía a conversa da rejeição do filho por isso decidiu puni-la não lhe dando a geleira.
- Ché! Pensas que comigo é cama e mesa de graça? Estás enganado “Boss”, faz kilape ou quê, mas a minha geleira tem que sair. Se não comprares não vale a pena vires-me dormir. Ouviste?
“Azarado” não teve tempo para responder à pergunta. O alvoroço que se fez no quintal abafaria qualquer tentativa de resposta. 
Eram seis horas da manhã.
No quintal viviam quatro famílias que disputavam a mesma latrina, aquela era a hora mais difícil do dia. Uns dançavam na porta da privada ao ritmo da urina, que reclamava para sair; outros escovavam os dentes, expelindo saliva esbranquiçada no quintal, matando as pernas no ‘vai e vem’, demonstrando alguma impaciência; as mulheres esfregavam os pés na pedra, enquanto esperavam pela sua vez. 
A velha Samba varria o quintal, como era de hábito, com uma vassoura de palitos, feita com folhas de palmeira e cantarolava, feliz por mais uma conquista; mais um dia de vida. A música parou quando foi empurrada pela “Coitada”, a idosa titubeou e foi socorrida a tempo, pelo neto, para não cair.
- Ché, tás maluca ou quê? – Resmungou. – Parece que dormiste destapada!
- Desculpa avó, foi sem querer, a minha irmã está muito nervosa. – Joana respondeu envergonhada pela atitude da “Coitada”, sua irmã.
- Não sei porque pedes desculpas! Esta gente toda não presta, acobertaram as poucas-vergonhas do “Azarado”, se não fosse a minha amiga Zefa que me alertou, nunca saberíamos onde o cabrão passa as noites.
- Os vizinhos não têm culpa, cada um tem a sua vida, portanto vai com calma.
“Coitada” reagiu inversamente ao pedido da irmã, gritava impropérios descontrolada, chamando a todos alcoviteiros, algumas pessoas responderam aos insultos, enquanto a irmã tentava em vão acalmar os ânimos.
Os gritos vindos do quintal também foram ouvidos no quarto. O barulho era tanto que o casal se levantou da cama num impulso, mas não tiveram tempo para vestir as roupas, foram surpreendidos com o ruidoso cair da porta, resultado do impulso dado pela “Coitada”, a esposa do “Azarado”.
- Sua P%@#t@ de merda! Andas a prejudicar os meus filhos, esta merda nunca tem dinheiro para a família porque gasta todo contigo, agora vais ver, vou dar-te um bom correctivo para aprenderes a respeitar o lar dos outros.
Ela puxou o lençol da cama, deixando o amante completamente a descoberto e cobriu-se, enquanto as vizinhas agarravam a rival enfurecida.
O “Azarado” segurou o bacio que estava próximo e tapou com ele os seus pertences ainda inflamados pelo calor da Kolokosa, enquanto ela, recuperada do susto, reagiu aos insultos da rival atirando-lhe sapatos, vasos, enfeites e tudo o que a sua mão pode alcançar.
Os vizinhos dividiram-se em a quem dar razão.
- É bem feito, ela é uma bandida, está a roubar o marido da outra - disse uma senhora aborrecida.
- Não acho correcto ela ter vindo até à casa da Kolokosa fazer esta confusão. Devia esperar que o marido chegasse a casa para resolver o problema.
- Dizes isso porque também não tens marido e se calhar até também fazes a mesma coisa.
- o que dizes?
- Se calhar és também uma destruidora de lares como esta bandida.
- Domingas estamos aqui para apaziguar e não para tirar partido.
- Por mim deixaria que lhe dessem uma boa surra para ganhar juízo.
Maria, que tinha o hábito de ir ao encontro da comadre para juntas irem ao trabalho, ao deparar-se com a briga, tomou as dores da amiga.
- Ché! Vieste da tua casa para insultar a minha amiga, porquê que não guardaste o teu marido no saco?
- Não te metas nisso, sua cachorra, senão também vais levar – respondeu-lhe a irmã da “Coitada”, por lhe conhecer a fama de barraqueira.
- Você não me conheces. Sou mbora do mato e gosto de bater quando me insultam, agora vais-me conhecer, sua bandida! – Maria partiu logo para a luta e levou a melhor, dando uma bassula na adversária.
O “Azarado” continuava inerte, com o bacio a cobrir-lhe o pénis, tremendo que nem varas verdes num vendaval, quando foi socorrido pelo Teixeira que recolheu as roupas espalhadas pelo chão e ofereceu a casa para que se pudesse vestir e sair daquele local. Ele nem forças tinha para acudir a situação.
Com o sexo arrefecido mas escondido atrás do bacio de plástico cor-de-rosa, o vento abanava apenas as nádegas destapadas do envergonhado, quando este deixou o recinto da briga, na companhia do Teixeira, debaixo de uma chuva de vaias.
- Ohhhhhhhhh, olha o rabo dele….!
O cenário era hilariante. A cor do bacio ajudou ainda mais a ridicularizar o homem, que se escondia da multidão embaçado. A mão livre tentou, em vão, cobrir-lhe as nádegas avantajadas, que encantavam as mulheres viúvas e os homens confusos sexualmente. 
“Azarado” odiou a infeliz ideia da compra do bacio cor-de-rosa, com o formato de uma sanita, para agradar à sua amante.
De noite, os morcegos rondavam a pequena construção feita de chapas de zinco, que servia de latrina para todos os moradores do quintal. Kolokosa borrava-se de medo, de tal modo que, evitava sair do quarto no escuro, para fazer as suas necessidades fisiológicas, por isso, urinava numa lata de leite vazia, até que decidiu pedir um bacio ao namorado. O bacio era um encanto, ela exibiu-o a todas as amigas, que comentavam com os maridos, amantes e namorados. A pequena latrina cor-de-rosa já era famosa, contudo, poucos a tinham visto até àquele dia em que cobriu a robustez do “Azarado”. 
«Prefiro ter um homem que me abrace na sociedade, mais do que na cama». - Disse Kolokosa em alto e bom som».

Etelvina Diogo
escritora angolana
Membro da Academia de Letras do Brasil-ALB
correspondente de Luanda - Angola





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