TRANSFOBIA, LUTO E ÓDIO: A CADA DIA, MAIS UM DE NÓS
Domingo, 07/05, acordamos com a dor de mais um de nós levado – Thadeu, trabalhador trans e negro, foi assassinado em sua casa na Bahia. Acordamos domingo como acordamos sábado, aliás, com a notícia da perda de Luana Muniz, trabalhadora travesti carioca, e como acordamos todos os dias, pela certeza ou pelo medo.
Acordamos, aliás, como acordam dia a dia esposas de Amarildos e mães de Dandaras e Lauras, chorando assassinatos de Cláudias, e familiares das vítimas do Carandiru, ou como a mãe periférica em pânico porque o filho, negro, ainda não chegou e a PM ronda – e acordamos, ainda assim, menos piores do que como Rafael Braga acordará pelos próximos 11 anos. E cada notícia que nos chega da barbárie diária, seja pela mídia ou pela proximidade, alimenta aqueles nossos conhecidos sentimentos de ódio e revolta – sem rosto, sem alvo, só ódio e revolta. Domingo foi a dor por Thadeu, trabalhador trans e negro, que nos reavivou essa dor. Toda manhã como essa ressoa, no fundo de nós, inevitavelmente, os “por quê?”, os “até quando?” e os “quando serei eu?”.
Se as diversas formas de dominação e opressão que a nossa classe sofre tem raízes comuns, é fato que são diversas nas suas especificidades. Como ignorar que vivemos no país recordista mundial em assassinato de travestis e transexuais (e em buscas por pornografia trans na internet), ou que a população negra trabalhadora sofre um verdadeiro extermínio pelas mãos da sociedade e do Estado? Como ignorar a composição étnica do sistema carcerário, das regiões periféricas – ou da própria classe? Como ignorar que 90% da população de travestis e mulheres trans está relegada à prostituição e que o suicídio ou a ideação suicida é uma realidade para cerca de 66% dos homens trans? Parece até sempre difícil, para nós, alcançar com a mão qualquer sentimento de pertencimento maior do que nossos grupos de afinidade mais imediata – não por qualquer pressuposta falta de empatia, mas talvez porque as formas específicas das nossas opressões são tão brutais e eficazes, tão presentes e persistentes, que nos cercam a todo momento, atravessam todas as nossas relações (inclusive as com pessoas da nossa classe) e acabam por ocupar todo o nosso campo de visão.
Encontrar nossas respostas, no entanto, pede não que ignoremos o quinhão de barbárie que nos cerca atrás de uma abstração qualquer de uma “classe trabalhadora” homogênea, mas que a compreendamos de fato, que aprendamos a encontrar as relações e determinações com engajamento real na transformação das coisas. Isso pressupõe, logo de início, pôr de lado as perspectivas que colocam nossas opressões como um problema estritamente cultural, ou meramente comportamental. A própria experiência concreta, na verdade, nos mostra o contrário.
O conjunto das precariedades típicas da nossa experiência social tem lugares comuns: as relações acentuadamente precárias de acesso ao trabalho, com destaque para os trabalhos informais e de maior vulnerabilidade, como o trabalho sexual, nas centrais de call center ou no comércio ambulante e que implicam diretamente nas possibilidades concretas de subsistência (e na sua forma); o acesso dificultado e inconsistente à saúde pública, inclusive com inexistência ou incipiência de atendimentos específicos para necessidades específicas; a negação do acesso à educação e à formação de qualidade; o encarceramento em massa e os dois-pesos-duas-medidas da lei, acompanhado pela perseguição e violência policial; a negação multifacetada do direito de acesso pleno ao espaço público (e portanto, também ao político), convertido em arena de violências e exclusões; assim como as variadas consequências e implicações desse lugar de margem.
É verdade que a forma que essa precarização assume é atravessada por um forte “caldo cultural” racista, LGBTfóbico e misógino que dá o tom dessas violências e parametriza comportamentos sociais e o tratamento que nos é direcionado nas relações interpessoais, e que mesmo retroalimenta essa aparente exclusão. É importante entendermos, no entanto, que esse “caldo cultural” não veio do nada nem é o ponto de partida do problema, ainda que lhe dê aparência.
Ele é, sim, em partes, consequência da histórica dominação masculina, das divisões sexuais e generificadas do trabalho e dos consequentes modelos organizativos de família, bem como dos mais de três séculos de escravização do povo negro no Brasil e das suas infinitas implicações e consequências. Mas é mais que isso. Gênero e racismo não são apenas tipos de dominação anteriores ao capitalismo que perduram até os tempos atuais. São dominações que perduraram porque foram instrumentalizadas, incorporadas, adaptadas e condicionadas para fazerem parte da própria constituição e manutenção do capitalismo! O modelo tradicional de família foi e é fundamental para a organização tanto da hereditariedade da propriedade privada, para a burguesia, quanto para a reprodução da vida dos “indivíduos livres” para a classe trabalhadora; a escravização da população negra foi peça fundamental nos primeiros passos (de mais de três séculos!) de formação do capitalismo no Brasil e na própria constituição da classe trabalhadora.
As precariedades citadas não são expressão de uma exclusão social – ao contrário, são o indicativo dos lugares exatos onde estamos convenientemente incluídas! Somos o exército industrial de reserva, mantidas nas margens porque é fundamental para o sistema que essas margens existam; somos parte, com nossas opressões, do rebaixamento do valor da força de trabalho, da obsolescência programada da força de trabalho; estamos onde estamos porque é lucrativo demais, para os pretensos donos do mundo, que continuemos aqui e assim. Não é só cultural, não é só comportamental, não é “a maldade e o caráter de pessoas ruins”. É um mundo, um sistema, que nos reserva um lugar e um papel específicos na sua perpetuação.
O ponto, aqui, não é o de justificar ou minimizar o problema. É o contrário: precisamos gritar e fazer saber que não é coisa pequena! Que não se resolve com campanhas informativas do Estado ou com programas de TV, que não é um problema de discursos equivocados ou de falta de conscientização… Que é sério, profundo e sistêmico. Tampouco é intenção amenizar, de qualquer forma, o ódio e a revolta. É também o contrário: que eles ganhem corpo, forma, rosto e alvo; que eles nos motivem a lutar, mais e mais, mesmo quando tudo parece dificultar e o desânimo parece engessar. Para que, juntos, coletivamente e organizados, reunamos força para destruir o que precisa ser destruído e igualmente juntos, construir a nossa emancipação. Como classe e espécie, em toda a sua diversidade.
Toda a solidariedade e apoio aos que sofrem, diariamente, com nossas mortes. Solidariedade de classe, da nossa, e diversa como ela é.
Coletivo LGBT Comunista
Comentários
Postar um comentário