Sobre dores e reparação – o legado de Nelson Mandela
Laura Moutinho é professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação, ambas da FFLCH-USP
Em dezembro do ano que passou, o mundo completou três anos sem a presença de Nelson Mandela, primeiro Presidente da África do Sul pós-apartheid. Sua morte aos 95 anos, em 5 de dezembro de 2013, era esperada, devido à idade avançada e aos problemas de saúde que enfrentava há meses.
Entretanto, Tata – que significa pai, uma das formas carinhosas para se referir àquele que refundou a nação e era tido como um dos últimos estadistas do século XX – trouxe com sua morte muitos lamentos e a memória tanto do regime do apartheid, quanto do processo de reconciliação, que instaurou a democracia sul-africana.
Nesse momento em que o mundo vive um recrudescimento da intolerância, que ganhou espaço com ares fascistas, no sentido de não aceitar as diferenças, vale relembrar a trajetória de Nelson Mandela e sobretudo a força de seu legado. A África do Sul do pós-apartheid traz muitas fraturas, ainda que o país seja frequentemente citado como o que possui a “mais progressista Constituição do mundo” – tendo assombrado a todos pela forma como conduziu a reconstituição do tecido social após o regime racista autoritário. Especialmente, a partir da polêmica experiência com a Comissão de Verdade e Reconciliação (CVR), que fez com que vítimas e algozes se encontrassem.
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A postura rumo à reconciliação do país, que acompanhou a libertação de Nelson Mandela, encarcerado por 27 anos na prisão de Robben Island na Cidade do Cabo, surpreendeu os que falavam em vingança, guerra civil, morte e confisco das terras dos whites sul-africanos. Mesmo quando Chris Hani, seu amigo, membro do partido comunista e presidente do Umkhonto we Sizwe, foi assassinado por um white (polonês) em 1993 e tumultos se espalharam por várias regiões, Mandela foi à televisão pedir calma, destacando que se whites o assassinaram havia sido também a denúncia de uma mulher white e africâner que havia permitido a identificação e a prisão do assassino. Vejamos algumas de suas palavras:
A postura rumo à reconciliação do país, que acompanhou a libertação de Nelson Mandela, encarcerado por 27 anos na prisão de Robben Island na Cidade do Cabo, surpreendeu os que falavam em vingança, guerra civil, morte e confisco das terras dos whites sul-africanos. Mesmo quando Chris Hani, seu amigo, membro do partido comunista e presidente do Umkhonto we Sizwe, foi assassinado por um white (polonês) em 1993 e tumultos se espalharam por várias regiões, Mandela foi à televisão pedir calma, destacando que se whites o assassinaram havia sido também a denúncia de uma mulher white e africâner que havia permitido a identificação e a prisão do assassino. Vejamos algumas de suas palavras:
“Esta noite eu falo com todos os sul-africanos, black e white […] Um homem white, cheio de preconceito e ódio, veio ao nosso país e cometeu um ato tão abominável que agora toda a nossa nação está à beira do desastre. Uma mulher white, de origem africâner, arriscou sua vida [nos informando] para que pudéssemos levar este assassino à justiça. […] Somos uma nação de luto”[i].
Todo um amplo processo social e ideológico transformou Nelson Mandela em mito: um homem, uma nação. Seu caminho e formas de negociação são os mesmos que a nação deveria se inspirar e seguir. Sob a legitimidade de alguém que havia sofrido as consequências do governo autoritário racista, palavras como perdão e reconciliação, sofrimento e verdade (em suas múltiplas acepções) ganharam novos sentidos e usos contra outras também ressignificadas: ressentimento, remorso, revanche e vingança. Na nova Constituição, a reconciliação é apresentada como parte de um processo de reconhecimento (das injustiças raciais) e de cura (das divisões do passado)[ii].
Nesse momento em que o mundo vive um recrudescimento da intolerância, que ganhou espaço com ares fascistas, no sentido de não aceitar as diferenças, vale relembrar a trajetória de Nelson Mandela e sobretudo a força de seu legado
Esta é a atmosfera que envolve a criação da Comissão de Verdade e Reconciliação. O foco da CVR foi a verdade: a localização de informações que revelassem os crimes praticados durante o período do apartheid (por vítimas e perpetradores) e que expusessem meandros do funcionamento do regime de segregação.
Tratou-se, portanto, não de um ato de vingança mas de promoção da reconciliação e da unidade nacional. No sentido de investigar crimes ocorridos entre 1960 e 1994, Nelson Mandela, agora como presidente da África do Sul, apontou o arcebispo anglicano Desmond Tutu, como o presidente da Comissão.
As vítimas foram ouvidas publicamente, dando testemunhos das violações sofridas em frente aos seus perpetradores, que podiam solicitar anistia da pena, caso estivessem condenados, em troca de informações que esclarecessem os crimes. Muitas dessas audiências foram transmitidas por rádio e pela televisão. Todo seu formato, que combina confissão (no sentido religioso), interrogatório legal, história oral, cura religiosa produziu um cenário no qual a nação poderia expurgar seu passado, produzir o perdão e a reconciliação.
Um grupo amparava aqueles que testemunharam. Tradutores permitiam que todos ouvissem e acompanhassem as audiências – são hoje 11 o número de línguas oficiais na África do Sul. O sofrimento é nesse contexto uma categoria chave contra o racismo, na construção de uma humanidade comum. Desse amplo e complexo processo que já abordei anteriormente, interessa para a reflexão ora proposta reter um importante aspecto: um efeito do processo, ao qual tive acesso através de minha pesquisa, em mulheres.
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Anne, uma africâner, de 29 anos, que fez parte da equipe de pesquisa que conduzi na Cidade do Cabo, explicita alguns dos aspectos que estou mencionando ao dizer que a entrevista que ela mais apreciou foi com uma mulher urban black, de 22 anos. Bsy nasceu em Soweto, Johannesburg. E afirmou que: “em termos de etnicidade eu seria Zulu, mas eu cresci muito intercultural com sotho, xhosa e inglês”. A mãe é professora e “ensina numa escola católica” disciplinas como história e ciências sociais. O pai é medico e Tswana de origem.
Anne, uma africâner, de 29 anos, que fez parte da equipe de pesquisa que conduzi na Cidade do Cabo, explicita alguns dos aspectos que estou mencionando ao dizer que a entrevista que ela mais apreciou foi com uma mulher urban black, de 22 anos. Bsy nasceu em Soweto, Johannesburg. E afirmou que: “em termos de etnicidade eu seria Zulu, mas eu cresci muito intercultural com sotho, xhosa e inglês”. A mãe é professora e “ensina numa escola católica” disciplinas como história e ciências sociais. O pai é medico e Tswana de origem.
Mesmo quando Chris Hani, seu amigo, membro do partido comunista e presidente do Umkhonto we Sizwe, foi assassinado por um white (polonês) em 1993 e tumultos se espalharam por várias regiões, Mandela foi à televisão pedir calma, destacando que se whites o assassinaram havia sido também a denúncia de uma mulher white e africâner que havia permitido a identificação e a prisão do assassino
Anne notou no processo grande semelhança entre as duas trajetórias. Elas vivem nos subúrbios da Cidade do Cabo. Ambas são “muito parecidas”: elas gostam de livros, ambas “pensam realmente” sobre o mundo. Anne afirmou que elas tinham opiniões similares. Ambas possuem um histórico familiar parecido: Bsy vem de uma família black católica, ou seja, uma família extremamente religiosa.
Anne foi criada na Igreja Holandesa Reformada (que sustentou o apartheid) e atualmente é metodista. Ambas vieram de um espaço profundamente segregado, ambas cresceram sem pai. Anne diz que Bsy é “muito consciente”. Isto significa, entre as pessoas com quem convivi, que elas são conscientes da forma como o racismo se constituiu. Anne explicita e vislumbrou este movimento em Bsy: a necessidade de se mover para fora de – ou mesmo contra – um universo profundamente instintivo e arraigado que se resume em se ver e perceber primeiramente como black ou white.
Anne se diz preconceituosa, pois acredita que não é possível ser sul-africano sem ser preconceituoso. Mas elas são críticas do racismo que marcou suas trajetórias. Ambas são, sobretudo, profundamente conscientes do código cultural ao qual estão atreladas.
A dúvida sobre o vocabulário que suas famílias e os grupos de origem possuem para se expressar e pensar o mundo marca a fala destas moças. Foi possível entrever um novo “campo de possibilidades”, que não exclui o racismo sul-africano. Em realidade, alguns desses jovens que a investigação localizou estão encontrando um espaço in between, valorizando o desenvolvimento de uma competência cultural, lingüística e comportamental que lhes permita lidar com a herança do apartheid, negociar com seu próprio racismo, lidar com as diferenças e, sobretudo, percorrer distintos espaços.
Há jovens e situações que parecem se situar em um espaço in between: um espaço de intersecção entre distintos sistemas e a ideia de forgiveness parece ocupar um lugar central neste cenário: uma possibilidade de perdão e/ou reconciliação através da história das vítimas do apartheid e da conversa frente a frente entre as vitimas e seus algozes com o objetivo de enfrentar o passado e de reconduzir o país.
O racismo é, sem dúvida, uma ferida aberta na África do Sul. O regime democrático e a ordem moral que o sustenta não eliminaram a desigualdade social, o racismo e múltiplas formas de exclusão. O que descrevo nesta cena representa, entretanto, o legado de Nelson Mandela que poderia, mais do que nunca, inspirar o Brasil e o mundo atual.
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