A Memória e o Poder Mítico do 18 de Janeiro de 1934
Publicamos no esquerda.net as
conclusões da tese de mestrado de João Vasconcelos “O 18 de Janeiro de
1934 – História e Mitificação”, defendida em 2002. No 80º aniversário da
greve geral revolucionária, a Cultra organizou uma exposição e um
colóquio e o Bloco um jantar de comemoração na Marinha Grande.
Praça Stephens ocupada – Fotos extraídas do blogue 18janeiro1934.blogspot.pt
Alexandre Babo salientou que o 18 de Janeiro na Marinha Grande não teve
no país a repercussão correspondente à sua importância, devido à
censura à imprensa e ao clima repressivo de Salazar cada vez mais
violentoi.
Este velho escritor colocou o dedo na ferida – a importância, o peso do
acontecimento revolucionário que teve lugar na vila vidreira. Tal não
significa que as ações ocorridas noutras localidades, como as greves de
Almada, Barreiro, Silves, Sines, fossem elas gerais de um, dois, três ou
mais dias, ou os atentados da Póvoa de Santa Iria, Chelas, Coimbra ou
Barreiro, para não citar todos, não tivessem sido igualmente
importantes, mas foram-no significativamente muito menos.
Salazar castigou sem contemplações todos os seus autores, fossem eles
anarco-sindicalistas, comunistas, sem partido ou de outra tendência
qualquer. A repressão violenta e os actos punitivos “exemplares” eram
características da Ditadura “bélico-escolástica” de Salazar, no dizer de
Unamunoii,
muito embora não atingissem as dimensões do fascismo italiano ou do
nazismo alemão. Ao campo de concentração do Tarrafal foram parar homens
envolvidos em diferentes tipos de ações que ocorreram no 18 de Janeiro.
A importância atribuída aos acontecimentos da Marinha Grande têm a ver,
segundo julgamos, com dois fatores. Em primeiro lugar, pelo facto de
ali ter eclodido um levantamento insurrecional armado da parte dos
operários contra o regime ditatorial; em segundo, essa insurreição foi
dirigida pelos comunistas. Os principais dirigentes sindicalistas eram
afetos ao PCP e à Comissão Inter-Sindical, não obstante terem
participado outras correntes, caso dos anarco-sindicalistas, como
mencionou o próprio José Gregório no seu Relatório. A direção
do movimento e a influência maioritária pertenceu ao Partido Comunista,
como reconheceram os libertários Mário Castelhano e José Francisco, o
socialista Edmundo Pedro, entre outros, para além dos próprios
comunistas e até do regime salazarista.
Forças repressivas na Marinha Grande
O “Estado Novo”, através de diversos instrumentos, incluindo a
imprensa, omitiu, manipulou e adulterou os acontecimentos, fazendo
centrar a sua atenção sobre os seus aspetos “terroristas”, como o
atentado que fez descarrilar o comboio na Póvoa de Santa Iria, e dando a
entender que a ação marinhense seria secundária. No entanto, esta era
considerada de um modo geral como a ação mais grave, fomentada por
Moscovo, pelo bolchevismo, ou pela III Internacional. Não foi por acaso
que à Marinha Grande afluíram tantas forças governamentais, ocupando-a
militarmente – PSP, GNR, tropas de infantaria e artilharia, de
caçadores, um esquadrão de cavalaria, elementos da PVDE e até a aviação
sobrevoou a vila e o pinhal. Em nenhuma outra localidade se viu um
aparato bélico de tal intensidade em homens e material de guerra, cujo
objetivo era o de esmagar um grupo de operários “bolchevistas”
(apelidando-os de díscolos, sanguinários, etc.), que tiveram a ousadia
de se levantar em armas contra o regime. Havia que atuar depressa e
drasticamente para não criar precedentes. Tanto mais que as ideias
comunistas estavam a ganhar terreno, particularmente no seio do
movimento operárioiii.
Também não é por acaso que logo a seguir à tentativa da “greve geral
revolucionária”, Salazar declarou que a ideologia “bolchevista”
constituía a “grande heresia” do século XX.
Um outro aspeto a salientar é que o 18 de Janeiro na Marinha Grande
“consubstanciou e até ofuscou toda a restante história do concelho”iv,
como ainda hoje é reconhecido, o que está muito longe de acontecer em
Silves, Almada ou Barreiro, onde as recordações do acontecimento já
vagueiam nas brumas do esquecimento. Em termos históricos, têm maior
significado para Silves aspetos do período islâmico, a reconquista da
cidade em 1189, ou mesmo a greve de 90 dias que ali se verificou entre
os operários corticeiros, em 22 de Junho de 1924, provocando um morto e
vários feridosv, do que o 18 de Janeiro de 1934.
Em
suma, a projeção que o 18 de Janeiro de 1934 atingiu deve-se à revolta
armada por parte do proletariado da Marinha Grande, aliada ao facto de
ter sido dirigida pelos sindicalistas do Partido Comunista. A greve
geral de 1918 contra o Sidonismo, ou as grandes greves dos anos 40,
muitas destas dirigidas pelo PCP, e que atingiram características de
quase revolução social, ficaram muito aquém do 18 de Janeiro porque não
tiveram a sua Marinha Grande. Será um erro considerar que a insurreição
marinhense se insere na tradição do revolucionarismo republicano.
Mesmo que uma boa parte dos operários e da população que aderiram à
revolta perfilhassem outro tipo de conceções, como o
anarco-sindicalismo, o republicanismo ou outro ( e certamente que
havia), os seus principais protagonistas identificavam-se com o PCP.
José Gregório, Amarante Mendes, António Guerra, Manuel Baridó, Manuel
Esteves de Carvalho, Augusto da Costa, Manuel Jubiléu, entre outros.
Bastava que estes homens, no fulgor e na alegria da vitória,
vitoriassem, ou dessem vivas ao Partido Comunista, à União Soviética, à
Internacional Comunista, ou mesmo ao alegado “soviete”, como mencionou
“Alberto”, para que toda aquela gente correspondesse entusiasticamente.
(Todas as outras correntes acabaram assim por ficar secundarizadas,
sendo os libertários os mais prejudicados). Mesmo que a vitória, com ou
sem “soviete”, durasse apenas uma, duas ou três horas. É aqui que reside
o poder mítico do 18 de Janeiro na Marinha Grande.
É um facto que os elementos do PCP/CIS atuaram debaixo de conceções de
“revolução social” dos anarquistas, mas também atuaram impregnados pela
política de “classe contra classe” defendida pela Internacional
Comunista. Bento Gonçalves, atuando dentro dos parâmetros leninistas e
analisando a conjuntura política em 1933/34, foi no entanto impotente
para conduzir o partido no caminho das “greves e manifestações de
massas”, como ele próprio afirmou, o qual se orientou em grande parte,
na direção da “greve geral revolucionária”, pugnada pela CGT e pela CIS
de José de Sousa. Todavia, o secretário-geral do PCP encontrava-se
“refém” da política de “classe contra classe” aprovada pelo Komintern em
1928.
Presos no 18 de janeiro
No âmbito da nova tática delineada pelo VII Congresso da I. C.,
incluindo na fase preparatória, esta foi “implacável” nas críticas à sua
Secção Portuguesa, nomeadamente no que respeita à atuação no 18 de
Janeiro. Foi severamente criticada a cedência do Partido às conceções
ideológicas do anarquismo por ter embarcado na chamada greve geral
revolucionária, inclusive por se ter lançado na ação insurrecional da
Marinha Grande, apresentando-a como um modelo de boa tática leninista,
quando as condições no país se encontravam muito longe de uma situação
revolucionária. O Próprio Bento Gonçalves não foi poupado às críticas e
ele, como homem da Internacional, atuou em conformidade fazendo a sua
autocrítica em Duas Palavras. Foi porventura demasiado severo
para com a vanguarda operária e para com os próprios elementos
partidários que atuaram na Marinha Grande. Assim se explica, em parte,
os “silêncios” a que o partido relegou os acontecimentos da vila
vidreira.
No entanto, independentemente das críticas do Komintern, da nova
orientação tática do PCP, das acusações e contra-acusações da
responsabilidade pela derrota do movimento entre anarquistas e
comunistas, a revolta da Marinha Grande continuou a funcionar no
consciente de uma parte do movimento operário português como um
acontecimento mítico, em que, pela primeira vez na sua história, foi
instituído um poder proletário de cariz socialista, ainda que numa
pequena localidade e de forma efémera. Se não fosse a censura e se os
operários tivessem mantido a vila nas suas mãos durante mais tempo,
então a sua projeção mítica seria incomensuravelmente maior. Mesmo
assim, a Marinha Grande passou a funcionar como um poderoso mito, mais
como um símbolo do que um facto em si próprio, como um modelo de poder
proletário. Tal como a Comuna de Paris, salvaguardando as devidas
proporções, constituiu “a primeira experiência mítica de governo
operário”vi, no dizer de João Medina.
Nos anos 60 e no período pós-25 de Abril as controvérsias aumentaram de
intensidade em torno do acontecimento, centrando-se primordialmente na
ação desencadeada na Marinha Grande. No seguimento da adoção da chamada
linha “pacífica para o socialismo”, pelo PCP, no seu V Congresso de
1957, em consonância com as resoluções aprovadas no XX Congresso do P.
C. da União Soviética, em 1956, o movimento “marxista-leninista”
português acusou aquele partido de ter “renegado” os princípios
leninistas da insurreição armada presentes na Marinha Grande. Desta
forma, começou por reavivar a memória sobre a ação operária marinhense
pegando na figura “mítica” de José Gregório, o mesmo sucedendo com o
Partido Comunista que, agora sem quaisquer tipos de tibiezas e pruridos,
passou a reivindicá-la e a celebrá-la de forma estrondosa adaptando-se
aos novos tempos.
Os libertários, por direito próprio, voltam a entrar na contendavii.
Eles, cuja ideologia estivera na base da “greve geral revolucionária”,
estavam a ser obliterados da história da ação operária que ocorreu na
vila vidreira, o que não deixa de ser um paradoxo e de constituir uma
injustiça. Ainda por cima, foram-lhes atribuídos atos terroristas que
eles próprios não cometeram, não obstante terem fornecido o suporte
ideológico dos mesmos. Acabaram por “pagar o preço” de não ter sido a
CGT a força dirigente na Marinha Grande. De qualquer forma, os velhos
anarco-sindicalistas nunca se deram por vencidos nos últimos combates
que travaram sobre o 18 de Janeiro, e continuaram, sempre até ao fim,
inabaláveis nas suas conceções de Revolução Social.
Familares de presos
O 18 de Janeiro, de um modo geral, e em particular as comemorações do “levantamento heroico”viiie
a figura “mítica” de José Gregório, suscitaram polémicas,
interpretações, análises, debates, conferências, deturpações e omissões
propositadas, tentativas de aproveitamento e de apropriações, ódios e
paixões violentas, desde os protagonistas mais diretos, passando pelos
sobreviventes, políticos, historiadores e investigadores. Até os
socialistas reivindicaram o legado histórico da revolta operária da
Marinha Grande, quando o dirigente máximo do PSP na altura, Ramada
Curto, além de não ter hostilizado o “Estado Novo”, escreveu sobre as
vantagens da legislação laboral corporativa, contra a qual se rebelou o
proletariado de forma violenta.
Enquanto Mário Castelhano e Bento Gonçalves sucumbiram dolorosamente no
cárcere tarrafalista, Ramada Curto ainda tentou, nos anos 40, reativar o
Partido Socialista de forma legal. Só que, para Salazar, bastava
unicamente a União Nacional.
A terminar, tudo leva a crer que o 18 de Janeiro representou o fim de
uma época ao marcar uma rotura no movimento operário português. Por um
lado, constituiu o termo de mais de meio século de sindicalismo livre,
embora não deixasse de ser condicionado, consumando-se assim a
liquidação da autonomia operáriaix.
Por outro lado, representou o termo definitivo da hegemonia do
anarco-sindicalismo no seio do movimento operário, que vinha desde os
inícios da I República. O 18 de Janeiro também constituiu o fim de um
período do próprio Partido Comunista, ainda muito impregnado pela
ideologia e conceções do “reviralhismo” e do anarco-sindicalismo. A
reorganização dos anos 40 vai “reconstruir” um outro tipo de Partido.
Finalmente, ainda no rescaldo de mais uma, e da maior derrota operária
do século XX, Salazar elegeu o comunismo como o principal inimigo a
abater.
Para a história do movimento operário português, o 18 de Janeiro de
1934 faz parte da sua memória, em que os acontecimentos da Marinha
Grande assumem um papel de relevo. A própria História dos factos, ao ser
objeto de uma disputa tão furiosa, abriu o campo do Mito que, por sua
vez, acabou por mitificar os acontecimentos. Em suma, se a História
cedeu lugar ao Mito, este foi catapultado para o campo da Mitificaçãox.
Mas a História, de forma progressiva, tenta reocupar o seu lugar. Com
este nosso trabalho, procuramos contribuir um pouco mais para a história
do 18 de Janeiro. Mas temos a consciência de que muito falta ainda por
fazer.
Este texto de João Vasconcelos
é a conclusão da sua Tese de Mestrado em História Contemporânea,
defendida em 2002, e que tem o título: “O 18 de Janeiro de 1934 –
História e Mitificação”.
As fotos são do blogue 18janeiro1934.blogspot.pt (link is external)
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