A diferença entre o Negro nos EUA e na antiga União Sovietica

marcha-sobre-washingtonDiário Liberdade - [Jones Manoel] A História não é uma ciência neutra. Nenhuma ciência é. Com a derrota do movimento comunista no século XX e sua crise que quase o levou ao fim, a ideologia dominante partiu para uma contra-ofensiva assustadora. Para a ideologia dominante, todos os elementos emancipatórios conquistados pelo movimento comunista não existiam mais, todas as barbáries perpetradas pelo capital somem do horizonte histórico e os países socialistas são mostrados como a reencarnação do mal, o pior inimigo da democracia, dos direitos humanos e da liberdade. A categoria de totalitarismo, principal cavalo de batalha do pensamento conservador, resume bem essa visão estereotipada e reacionária [1].

No bojo da contrarrevolução se consolida, nos anos 80, no Mundo Ocidental, uma visão processual (ou seja, jurídica) de democracia. A democracia passa a ser apenas a vigência das regras jurídicas que garantem uma competição eleitoral regular. Toda luta do movimento democrático-jacobino e depois socialista/comunista contra essa visão jurídica de democracia foi esvaziada. Nesse momento de miséria ideológica, Hannah Arendt, uma das principais ideólogas da Guerra Fria, pôde lançar um livro [2] que afirmava que a Revolução Francesa só produziu violência e totalitarismo por trazer a "questão social" para a esfera pública – achando que a "questão social" podia ser superada. Já a Revolução estadunidense conseguiu instituir um "corpus político" que garantiu a liberdade (entendida como liberdades negativas) e a libertação (possibilidade de todos participarem da esfera pública).
Hannah Arentd reforça uma apologia cretina da ideologia dominante estadunidense. Ela "esqueceu", evidentemente, que a Revolução Americana manteve a escravidão sobre os negros (que só viraram cidadãos juridicamente no final dos anos 60 do século XX!) e acelerou o extermínio dos índios. Entre a Revolução Americana e o século XX, mais de 19 milhões de índios Pele Vermelhas foram exterminados brutalmente. Nada disso preocupou nossa autora. Ela conseguiu "analisar" o sistema político dos Estados Unidos sem levar em conta uma parte considerada da população daquele país e suas condições de vida (ou extermínio).
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Nosso objetivo é inverter a metodologia de Hannah Arendt: Ao invés de analisar o sistema político dos Estados Unidos excluindo os negros; vamos analisar como os negros eram tratados no sistema político e social dos Estados Unidos. Para nível de comparação e como forma de contribuir na desmistificação da historiografia reacionária da Guerra Fria, será comparada a situação do negro na União Soviética e nos Estados Unidos. Daremos preferência, no caso soviético, a comparação no período do Stálin. A escolha se faz devido à demonização desse período da história do movimento comunista -, como se nele não houvesse elementos emancipatórios. Por fim, antes de irmos ao próximo tópico, faz-se necessário demarcar uma posição.
Essa postura de Hannah Arendt -, seguida por praticamente todo pensamento burguês, de definir um sistema político à revelia da sorte dos explorados, é algo totalmente estranho à tradição leninista do marxismo. Por anos, depois da queda da URSS, o leninismo foi vítima de uma intensa campanha de difamação. Um dos principais argumentos era seu suposto viés antidemocrático e autoritário. Para além da constatação empírica de que as maiorias dos que fizeram essa crítica estão hoje nas fileiras da direita, é basilar resgatar o sentido original da crítica leninista à democracia burguesa:
Em relação a este mundo, Lênin representa uma ruptura não só no plano político, mas também epistemológico: a democracia não pode ser definida independentemente dos excluídos, "o despotismo" exercido sobre "bárbaros" obrigados à "obediência absoluta" própria dos escravos e as infâmias da expansão e do domínio colonial lança uma luz inquietante sobre os Estados Liberais, e não só que respeita à sua política interna (Losurdo, 2006, p. 18).
E dando voz ao próprio Lenin:
Nós somos partidários da república democrática como sendo a melhor forma de governo para o proletariado sob o regime capitalista, mas andaríamos mal se esquecêssemos que a escravidão assalariada é o quinhão do povo mesmo na república burguesa mais democrática (Lenin, 2007, p. 37).
Ser negro nos Estados Unidos
Analisar o racismo nos Estados Unidos é algo complicado, do ponto de vista metodológico, por um motivo: as manifestações do racismo mudam de forma de acordo com a época histórica e a localização geográfica na mesma época histórica. È sabido que no Sul do país o racismo sempre foi maior e mesmo no Norte temos estados mais racistas e outros menos racistas.
Dito isso, fica claro que vamos nos centrar nas manifestações de racismo de maior generalidade (as mais comuns) e as mais extremas para percebermos o grau de brutalidade. Vamos começar pelo imediato fim da Guerra de Secessão, o confronto entre Norte industrializado e Sul agrário que pôs fim à escravidão. Ao fim desta, muitos negros eram feitos prisioneiros por uma diversidade de crimes (os negros não tinham direito a ampla defesa e o judiciário tendia a condená-los independente das provas) e alugados a empresários particulares. A situação dessas pessoas era essa:
[...] que os detidos eram excessivamente e, às vezes, cruelmente castigados; que estavam miseravelmente vestidos e alimentados, que os doentes não recebiam cuidados, porque não se providenciara nenhum hospital e eram encerrados junto com os detentos sadios". Uma pesquisa feita pelo grande júri no hospital da penitenciária do Mississipi relatou que os pacientes traziam "todos em seus corpos os sinais dos tratamentos mais inumanos e brutais. Muitíssimos têm as costas dilaceradas pelas bexigas, cicratizes e bolhas, alguns com a pele esfolada depois de cruéis chicotadas...Jaziam moribundos, e alguns deles sobre tábuas nuas, tão fracos e macilentos que os seus ossos eram quase visíveis debaixo da pele, e muitos se lamentavam pela deficiência de alimentação. [...] Os condenados a trabalhos forçados nos campos de terebentáceas da Florida, com "correntes nos pés" e "correntes na cintura" presas aos seus corpos, eram obrigados a trabalhar a trote" (Losurdo apud Woodward, 2008, p. 168).
Oras, além dos maus tratos, como é de se deduzir, a taxa de mortalidade era absurda. No fim do século XIX, usando prisioneiros negros na construção de linhas ferroviárias, "morreram quase 45%" da força de trabalho (Lusurdo, 2008, 168). A maioria de jovens à flor da vida. No mesmo período, no estado do Alabama, a mortalidade de presos alugados foi: no primeiro ano, 25% de mortos; 35% no ano seguinte e 45% dois anos depois (idem, p. 169). Contudo, é sempre bom lembrar que o aluguel de presos negros não foi só algo do século XIX:
Os guardas tinham o poder de acorrentar os prisioneiros, de disparar sobre aqueles que tentassem fugir, de torturar quem se recusasse a submeter-se e de açoitar os desobedientes, nu ou vestidos, como estivessem, quase sem limites. Por oito décadas [desde os anos setenta do século XIX até a II Guerra Mundial] quase não houve condenações de um comprador desses escravos por causa dos seus maus-tratos ou da morte deles (Blackmon apud Lusurdo, 2008, p. 177).
Como diria a música de Sandra de Sá, "a carne mais barata do mercado é a carne negra". Essa longa-duração da banalização da violência sobre o corpo-negro não é achada apenas no aluguel de presos – uma forma velada de manter a escravidão. Em 1997, o presidente Clinton teve que pedir desculpas por, nos anos 60, mais de 400 anos negros terem sido usados como "cobaias humanas pelo governo. Doentes de sífilis, não foram curados porque as autoridades queriam estudar os efeitos da doença sobre uma amostra da população" (Idem, p. 170).
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Mas não basta manter formas disfarçadas à escravidão, é necessário estigmatizar publicamente os negros para mantê-los dominados. No Estado Democrático de Direito dos Estados Unidos, nas primeiras décadas do século XX, era normal negros serem espancados em praça pública em rituais periódicos como forma de manter um terror político-ideológico sobre eles:
Notícias dos linchamentos eram publicadas em folhetos locais e vagões suplementares eram acrescentados aos trens para espectadores, às vezes milhares, provenientes de localidades a quilômetros de distância. Para assistir ao linchamento, as crianças das escolas podiam ter seu dia livre. O espetáculo podia incluir castração, o esfolamento, a assadura, o enforcamento, os tiros de arma de fogo. Os lembranças a serem adquiridas podiam incluir os dedos das mãos e dos pés, os dentes, os ossos e até as genitálias das vítimas, bem como cartões ilustrados do evento ( Woodward apud Losurdo, 2008, p. 317).
Como podemos ver, os linchamentos eram públicos, abertos, com total conhecimento e apoio do poder público. Os organizadores dos linchamentos pensavam nos mínimos detalhes: "teme-se que os tiros contra os negros possam errar o alvo e atingir espectadores inocentes, que incluem mulheres com os filhos no braço". Mas, para nossos democratas, se tudo fosse feito de acordo com os conformes, "ninguém ficará desapontado" e em um dos linchamentos a reação dos brancos é: "a multidão aplaude e ri pela horrível morte de um negro... Coração e genitálias cortadas do cadáver" (ibidem).
Mas este quadro de barbarismo ainda não está completo. Foi comum achar notícia de homens inocentes mortos de forma cruel e antes de matar a vítima os seus algozes tinham por prática queimar sua cabana com todos os pertences. Afinal, a família também tinha que ser punida. Por falar em família, era totalmente proibido um negro namorar, casar, constituir família etc., com uma mulher branca. O Estado Democrático dos EUA, além de racista e terrorista, era patriarcal. As mulheres da sociedade eram vistas como posse e, é lógico, que os nossos democratas nunca deixariam os negros manterem relações afetivas com suas "posses":
Além dos negros, o terror atinge também os brancos que, familiarizando excessivamente com os negros, se tornam traidores de sua raça. É o que resulta já do título de um artigo do Galveston Tribune (Texas) de 21 de junho de 1934: "Uma moça branca é posta na prisão e seu amigo negro é linchado". O fato é que – se comenta alguns dias depois um editorial do Chicago Defender – no estado do Texas, uma mulher branca pode se acassalar-se mais livremente com um cão do que com um negro" (Ginzburg apud Losurdo, 2008, p. 318).
Agora temos um quadro histórico traçado mais ou menos fiel da situação do negro nos Estados Unidos. Como foi percebido, não falamos em maior profundidade da escravidão, sua amplitude, efeito e conseqüências. Não tratamos da violência sexual comum à mulher negra dos Estados Unidos e não falamos sobre o regime de segregação racial vigente no pós-escravidão: o conjunto de leis Jiw Grow. Evitei falar desses "fatos" por serem mais conhecidos e numa tentativa de fazer o texto um pouco menor.
Ser negro e racismo na União Soviética
Agora vamos comparar a situação do negro e a questão do racismo na União Soviética. Antes de começarmos, é necessário reforçar um aviso e tratar de um problema metodológico. O aviso é: como falamos no início do texto, nossa intenção não é analisar o sistema político como um todo da União Soviética, mas apenas a situação do negro e a questão do racismo. Uma caracterização maior do sistema soviético não é objetivo desse texto. Um problema metodológico é: na União Soviética tínhamos poucos negros. Então, o fenômeno do racismo, lá, tinha uma fonte e um alvo diferente que nos Estados Unidos. O racismo que a União Soviética combateu era o racismo do qual eram vítimas as centenas de minorias nacionais oprimidas. Mesmo com essa diferença, a comparação se mantém como útil; afinal, mesmo com nuances diferentes, o racismo guarda elementos comuns independente de quais sejam seus alvos.
O Estado Czarista oprimiu por séculos as pequenas nacionalidades. Essa opressão sempre foi combatida por Lenin e pelo Partido Bolchevique. O grande revolucionário russo fez do direito de autodeterminação das nações oprimidas, um princípio inegociável para os comunistas [3]. Essa política dos Bolcheviques foi reconhecida pelas minorias nacionais. Sua participação foi fundamental para a vitória da revolução:
Seria difícil exagerar a importância que teve a política nacional para a sobrevivência da União Soviética. Os povos não-russos da periferia do velho império Tzarista adotaram uma posição geralmente simpática para cm o Governo bolchevique. Stálin insistiu sempre em que foi a simpatia pelos bolcheviques nas repúblicas de fronteiras, nos momentos críticos da invasão estrangeira, que possibilitou o sucesso da revolução (Davis, 1978, p. 105).
Era essencial reverter os anos de práticas racistas e opressoras sobre as nacionalidades. Para isso:
A União Soviética foi o primeiro império mundial fundado sobre a affirmative action. O novo governo revolucionário da Rússia foi o primeiro entre os velhos Estados europeus multiétnicos a enfrentar a onda crescente do nacionalismo a responder promovendo sistematicamente a consciência nacional das minorias étnicas e estabelecendo para elas muitas das formas institucionais características do Estado-nação. A estratégia bolchevique foi assumir a liderança daquele processo de descolonização que se apresentava como inevitável e levá-lo a cabo de modo tal que preservasse a integridade territorial do velho império russo. Para tal fim o Estado soviético criou não só uma dúzia de repúblicas de amplas dimensões, mas também dezenas de milhares de territórios nacionais espalhados por toda a extensão da União Soviética. Novas elites nacionais eram educadas e promovidas a posição de lideranças no governo, nas escolas, nas empresas industrias desses territórios recém-formados. Em muitos casos isso tornou necessário a criação de uma língua escrita lá onde antes não existia. O Estado soviético financiava a produção em massa nas línguas não russas de livros, jornais, diários, filmes, óperas, museus, orquestras de música popular e outros produtos culturais. Nada comparável existiria antes (Martin apud Losurdo, 2008, p. 171).
E:
As repúblicas receberam, umas primeiro, outras depois, uma bandeira, um hino, uma língua, uma academia nacional, em alguns casos até um comissariado para o Exterior, e conservaram o direito, depois utilizado em 1991, de separar-se da federação, embora não tenha sido especificado o procedimento (Graziosi apud Losurdo, 2008, p. 172)
Oras, pode-se, com razão, usar o contraste de uma excessiva centralização do poder na Rússia, certa promoção do nacionalismo russo e práticas autoritárias sobre algumas nacionalidades. Essas objeções são verdadeiras. Contudo, necessitam ser contextualizadas. O nacionalismo russo e a centralização excessiva do poder na Rússia foi resultado da necessidade de uma rápida política de industrialização, modernização e combate ao imperialismo. A União Soviética era um país extremamente atrasado, agrário, sem capacidade produtiva satisfatória e defesa militar. Isso cercado por uma série de potências reacionárias prontas para exterminar o país do mapa: ao Ocidente, a Itália fascista, a Alemanha nazista e a Inglaterra e, ao oriente, o Japão fascista (para dar apenas alguns exemplos). Além disso, era necessário arrumar uma forma de elevar o moral geral do povo em vista do confronto vindouro:
Num discurso pronunciado em 1931, Stálin lembrou que a Rússia "foi derrotada pelos beis turcos. Foi vencida pelos nobres poloneses e lituanos. Foi derrotada pelos capitalistas ingleses e franceses. Foi superada pelos barões japoneses. Todos a venceram – devido ao seu atraso... Estamos 50 ou 100 anos atrás dos países adiantados. Devemos superar essa distância em 10 anos. Ou fazemos isso ou eles nos esmagam" (Davis, 1978, p. 116).
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Ou seja, na Rússia czarista, a principal manifestação do racismo era a opressão das minorias nacionais. Essa opressão foi apoiada de forma direta ou indireta por todas as potências ocidentais. O partido bolchevique sempre fez da defesa e da autodeterminação das minorias nacionais um dos pontos centrais do seu programa. Essa defesa fez com que os povos não-russos fossem fundamentais para o triunfo da revolução. No processo de edificação do Estado e da economia soviética tivemos uma ampla política de promoção da igualdade jurídica, política e cultural das minorias nacionais – combatendo de forma eficaz o racismo. Esse processo emancipatório sofreu certa constrição por causa dos processos históricos vigentes; mas, analisando a totalidade, percebemos que os elementos emancipatórios superaram os não emancipatórios.
Tivemos oportunidade de ver a trágica situação dos negros nos Estados Unidos. O sistema segregacionista Jiw Grow funcionava como uma forma legal de racismo que impedia, dentre outras coisas, os negros de usarem o direito ao voto:
"A técnica de desencorajar o voto de certos eleitores indesejáveis tem uma longa história. Oficialmente, os afro-americanos dispõem do direito de votar desde 1870. Nos estados do sul, porém, há cerca de um século foram impostas condições particulares (testes de idioma e civismo, pagamento de taxas etc.) destinadas a diminuir sua participação social. Com sucesso: no início de 1965, as listas eleitorais do condado de Lowndes, no Alabama, não contabilizavam nenhum dos 12 mil residentes negros do distrito, enquanto apresentavam 118% dos eleitores brancos potenciais. O fim da discriminação veio apenas em agosto daquele mesmo ano, quando o então presidente Lyndon Johnson promulgou o Voting Rights Act. Consequência: se em 1964 apenas 6% dos negros do Mississippi participaram das eleições presidenciais, quatro anos depois esse número aumentou dez vezes." [4]
Oras, na União Soviética a Constituição de 1937 – chamada de a mais democrática do mundo – criou o sufrágio universal independente de etnia, gênero, nacionalidade ou renda. Todas as minorias nacionais podiam exercer seu direito político de voto. Evidentemente que alguém pode questionar o efeito prático desse sufrágio, mas não deixa de ser significativo que em pleno auge do racismo mundial – com a Alemanha Nazista, o Sul dos EUA e o colonialismo na África e na Ásia – um país vá pela contracorrente e legalize os direitos políticos combatendo o racismo.
A Constituição Soviética de 1937 também trouxe outra inovação: a criminalização do racismo. Como já dissemos, isso em uma época na qual o racismo não tinha uma conotação negativa. Essa criminalização foi acompanha por uma ampla política cultural de combate ao racismo nas propagandas do partido e do Estado, no sistema educacional, na imprensa e em produções cinematográficas [5]. O resulto disso foi:
Uma negra, delegada no Congresso Internacional das mulheres contra a guerra e o fascismo, que se realiza em Paris em 1934, fica extraordinariamente impressionada com as relações de igualdade e fraternidade, apesar das diferenças de línguas e de raça, que se instauram entre os participantes dessa iniciativa promovida pelos comunistas: 'Era o paraíso na terra'. Aqueles que chegam a Moscou - observa um historiador estadunidense contemporâneo - 'experimentam um sentido de liberdade inaudito no sul'. Um negro se apaixona por uma branca soviética e se casam, mesmo se depois, ao voltar à Pátria, não pode levá-la consigo, sabendo o destino que o sul aguarda aos que se mancham com a culpa da miscegenation e do abastardamento racional (Losurdo, 2010, p. 280-281)
Essas políticas de promoção da dignidade das minorias nacionais, a criminalização do racismo e a ampla política cultural ao seu combate, combinavam-se com um combate forte e vigoroso ao colonialismo. A Internacional Comunista, quando criada sobre os auspícios de Lenin, colocou entre suas 21 condições de adesão um combate forte e sem tréguas ao colonialismo. O colonialismo foi, sem dúvida, o maior promoter do racismo na história humana. As potências imperialistas usaram o racismo para estruturar os mecanismos de poder e dominação. A Internacional comunista foi fundamental para dar o primeiro grande impulso de libertação para os povos coloniais:
Difundiam-se, com certa regularidade, notícias da penetração da propaganda bolchevista nas colónias portuguesas, a exemplo da "mensagem aos trabalhadores brancos e negros" assinada por Lênin e G. Thcitcherine e cuja cópia foi encontrada pelo chefe da circunscrição da Mossurize (então território da Manica e Sofala), em 1919, entre as mãos de um indígena de Johanesburgo. Circulam igualmente informações da passagem, em outubro de 1927, por Lourenço Marques, de um suspeito comunista, "o cidadão da Livónia russa de Bakin" e no mesmo mês foi repercutido um telegrama confidencial do Ministério português da Colónias comunicando a intenção de dois "comunistas" Dmitri Rodaien (ou Rodaiev?) e Senes Chapiro, acompanhados do português José Almendroa, se dirigiam à Guiné, Angola e eventualmente a Moçambique "em reunião de propaganda comunista especialmente encarregados de ativar com elementos locais o desenvolvimento da incidentes graves intervencionais entre as nossas colónias e as colónias inglesas" (Andrade, 1999, p.179).
Todas essas ações não deixaram de afetar a dominação racial nos Estados Unidos. O Partido Comunista daquele país começava a ganhar muito espaço nos guetos negros; os negros começavam a olhar com cada vez mais admiração a União Soviética e isso provocou muitos efeitos:
A URSS de Stalin influencia poderosamente a luta dos afro-americanos (e dos povos coloniais) contra o despotismo racial. No Sul dos EUA se assiste a um fenômeno novo e preocupante do ponto de vista da casta dominante: é a crescente 'imprudência' dos jovens negros. Estes, graças aos comunistas, começam, de fato, a receber o que o poder teimosamente lhes negava, a saber, uma cultura que vai muito além da instrução elementar tradicionalmente transmitida aos que estão destinados a fornecer trabalho semiescravo a serviço da raça dos senhores. Agora, porém, nas escolas organizadas pelo partido comunista no norte dos Estados Unidos ou nas escolas de Moscou, na URSS de Stalin, os negros se empenham em estudar economia, política, história mundial; interrogam essas disciplinas para compreender também as razões da dura sorte reservada a eles num país que se comporta como campeão da liberdade. Aqueles que frequentam tais escolas passam por uma mudança profunda: a "imprudência' censurada a eles pelo regime de white supremacy é na realidade a autoestima deles, até aquele momento impedida e espizinhada (Losurdo, 2010, p. 280-281)
Então temos aqui um aparente paradoxo interessante: os Estados Unidos se apresentam e são apresentados pela ideologia dominante como o principal representante da liberdade e da democracia prometidas pela burguesia; a União soviética era mostrada como o inferno na terra, o reino de horror e totalitarismo; contudo, os negros do "país da liberdade" olhavam para a URSS como o exemplo de liberdade e viviam em um grande despotismo terrorista em seu país.
Conclusão
Como demonstramos, para um negro os Estados Unidos e não a União Soviética é que representavam o autoritarismo, a violência brutal e o despotismo. Enquanto a potência capitalista manteve e mantém [6] durante toda sua história práticas racistas e genocidas contra o povo negro (e os índios), o Estado Soviético foi o primeiro país do mundo a criminalizar o racismo, promover uma ampla política cultural de combate ao racismo, promover a dignidade e a igualdade das minorias nacionais secularmente oprimidas e ser um instrumento de luta e grande referência na libertação dos povos coloniais, vítimas do racismo e da dominação mais brutal.
O texto também mostrou, embora esse não seja seu ponto central, que a idéia da ideologia dominante de que as experiências socialistas do século XX só significaram terror e tragédias para as minorias (negros, mulheres, gays, etc.) não passa de uma idéia deformada e que não corresponde à factualidade histórica.
Notas:
[1] Uma crítica destruidora da categoria de totalitarismo: http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo100critica17-A-losurdo.pdf.
[2] Livro com dois títulos a depender da edição. Ou "Da Revolução" (edições mais antigas) ou "Sobre a Revolução (edições mais atuais).
[3] Famoso ensaio de Lenin Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação: http://www.marxists.org/portugues/lenin/1914/auto/cap01.htm.
[4] Matéria completa: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1745.
[5] Filme Soviético de 1936 satirizando o racismo: https://www.youtube.com/watch?v=UMVHDfMYmx8.
[6] Matéria sobre a situação atual dos negros.
Livros citados:
Domenico Losurdo. Liberalismo. Entre a civilização e a barbárie. Anita Garibalde, 2006.
---------- Stalin: uma história crítica de uma lenda negra. Editora Revan, 2010.
V. I. Lenin. O Estado e a Revolução. Expressão Popular, 2007.
Mário Pinto Andrade. Origens do nacionalismo africano. Publicações Dom Quixote Lisboa, 1990.
Horace B. Davis. Para uma teoria marxista do nacionalismo. Editores Zahar, 1978.
Jones Manoel é graduando em História pela Universidade Federal do Pernambuco (nordeste brasileiro), militante da UJC/PCB e autor do blog Teorizando.


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